terça-feira, 10 de agosto de 2010

HOMENAGEM A MARILENE

Marilene de Jesus (da CPT)
Marilene no Acampamento 17 de Abril – Bom Jesus da Lapa - BA
Acabamos de enterrar Marilene, da CPT de Bom Jesus da Lapa – BA há 32 anos. “Põe a semente na terra, não será em vão. Não te preocupe a colheita, planta para o irmão.” Nunca me pareceu tão verdadeiro este canto. As pessoas especiais têm uma relação especial entre o modo como viveram e o modo como morrem... Ela fez de sua vida plantação e os irmãos e irmãs vieram celebrar e oferecer a colheita.

Os últimos tempos de Marilene de Jesus Cardoso Matos foram de uma intensidade reveladora: de um espírito inquebrantável, ela não teve um corpo que, ainda sendo forte, sustentasse tanto destemor – a revolta das células de um câncer tão violento quanto inadmissível a matou em três meses. As agruras familiares, o assassinato do esposo Afonso, a prisão arbitrária, as dificuldades em conciliar o estudo e o trabalho, as incertezas da luta popular na atual quadra... tudo isso junto e em pouco tempo foi um coquetel da vida duro de engolir até para uma Marilene.

A numerosa reunião provocada pela celebração de seu passamento, viva eucaristia, foi outra revelação: além dos familiares, gente de longe e gente de perto, de todas as cores, vários credos, graus de instrução, a diversidade dos movimentos sociais, organizações populares do campo e da cidade eram expressão de 53 anos de vida e uns 35 de militância popular, pastoral, eclesial.

Melhor os diziam os símbolos junto ao corpo tirado do aparato e simbolicamente plantado no chão do Centro Cristo Rei, em Santa Maria da Vitória, lugar-memorial das lutas sangrentas do povo do Oeste Baiano: flores, cactus, enxada, livros, água, lágrimas, bandeiras dos vários movimentos (sem terra, quilombolas, atingidos por barragem, mulheres, educação do campo, PJMP, CEBs, reserva extrativista, fundos e fechos de pasto), fotos dos mártires locais da Causa do Povo, cartazes da Romaria da Terra e das Águas ao Bom Jesus da Lapa, da qual ela era considerada “mãe” e participou de quase todas as 33 edições, os cantos mais evocativos da Caminhada, os testemunhos dos amigos e companheiras, os velhos pais, as duas jovens filhas, o pote que por acidente se quebrou espalhando a terra e todos souberam interpretar...

Marilene marcou com amor feito firmeza e carinho a vida de muita gente, dos camponeses em especial, do movimento popular, da Igreja, da CPT.

Marilene no escritório da CPT em Bom Jesus da Lapa-BA

Mulher, negra, pobre, urbana, filha de pais lavradores de terra alheia, desacostumou-se a dar de graça o suor e desde cedo, nas CEBs, na PJMP, na CPT, pôs-se a suar na luta do povo, no caminho do Reino, na Romaria para a Terra Prometida. Forjada na adversidade, aprendeu na contracorrente a ser libertária. Jamais se dobrou ou contemporizou com os poderes, nem os opressores nem os falsamente libertadores.

A qualidade que mais admirava nela era a consciência de seu próprio papel como agente de pastoral, como educadora popular, como CPT – servidora fiel da libertação verdadeira. Sempre ponderada, chegava a ser intransigente quanto ao protagonismo e autonomia do povo nas decisões que a luta exigia. Rechaçava qualquer tentação vanguardista ou ameaça de manipulação da vontade e do sonho dos trabalhadores. Sofria com as desilusões políticas, as manipulações, as cooptações, o refluxo da luta do povo.

E vinha da fé profunda este proceder, não era metodologia, estratégia ou tática. As leituras bíblicas de sua última celebração o disseram: “Eu ouvi os clamores do meu povo, por causa dos seus opressores. Conheço seu sofrimento e desci para o libertar das mãos de seus opressores e para fazê-lo subir para uma terra fértil e espaçosa onde correm leite e mel “(Êxodo 3,7-8); “O Reino de Deus é semelhante a um grão de mostarda, que um homem tomou e semeou no seu campo. Embora seja a menor de todas as sementes, quando cresce, é a maior das hortaliças e torna-se árvore, a tal ponto que as aves do céu se abrigam nos seus ramos” (Mateus 13,31-32). De fato nem Javé nem Jesus fizeram concessões ao que não fosse a vida, a liberdade, a justiça, a solidariedade, a paz, construídas em amorosa parceria com a humanidade. “Quero cantar ao Senhor, sempre enquanto eu viver, hei de provar seu amor, seu valor e seu poder”.

Em 25/03/2010, ordenada pelo Juiz da Comarca, Eduardo Nostrani, deu-se a prisão dela e do presidente do STR João Sodré, apenas porque assinaram como representantes nota de denúncia das arbitrariedades deste juiz no caso da grilagem de terra nas comunidades geraiseiras de fecho de pasto de Salobro, Quati, Mutum, Jatobá, Pedra Preta, Brejinho dos Gerais, pelos advogados Paulo (ex-padre) e Socorro Sobral. A prisão injusta, ainda que sofrida, completou uma vida de irrestrita solidariedade à luta camponesa, tão criminalizada hoje.

Muitos viram na trajetória de Marilene também um alerta para cuidarmos mais e melhor da saúde, da relação com a família, o que implica em rever prioridades e ritmo de trabalho. Sem, porém – para continuar fiel a Marilene –, que isso sequer resvale para preocupações pequeno-burguesas, tão encontradiças hoje.

Ainda na última hora, sinal de contradição dos tempos cruéis que vivemos e nos interpela cruamente: no muro do cemitério duas faixas foram colocadas lado a lado. Uma do Partido dos Trabalhadores de Santa Maria da Vitória alegava “profundo pesar pelo óbito da nossa companheira”. A outra, tosca, posta por trabalhadores, dizia pequeno em desenhos quase infantis de flor e coração com a palavra “mãe” e “te amamos, Marilene”, e pedia bem grande “QUEREMOS JUSTIÇA”.

A comoção geral era dor pelas perdas várias e específicas, mas era também profundo agradecimento pela trajetória de vida e serviço de Marilene. Sejamos na luta, nos movimentos populares, na política, na Igreja, na CPT, na vida, dignos e dignas da companheira que hoje devolvemos à terra, que tanto queria repartida! Viva Marilene de Jesus, da CPT.

Ruben Siqueira
CPT Bahia / São Francisco
Santa Maria da Vitória, 2 de agosto de 2010

Um comentário:

Anônimo disse...

Ao mesmo tempo em que pessoas boas assim se dão aos montes, quem luta sabe o quanto é dificil encontrar alguem como ela. Um revolucionario de verdade não é só aquele que derruba o seu ditador, mas muito mais aquele que dá sua vida a tentar mudar a dura realidade que se poe diante de seus olhos, que te tira o pão e mata seus amigos. Muito triste por perder alguenm como Marilene, seus companheiros sentem no peito a falta que ela fará, mas muito feliz de quem a conheceu e pode aprender com ela como não se acovardar diante de nossos opressores.