A idade nos faz responsáveis pelo que há de vir a ser depois de nossa passagem por este mundo, ainda que nossas crenças não passem de desejos. Existem razões para que tenhamos sentimentos inexplicáveis como amor, afeição, compaixão, solidariedade... creio que tudo se explique pelo instinto de sobrevivência, principalmente quando nossa convicção maior seja a de que a morte nos despe de todas as conquistas que a curta vida nos legou. Já abordei esse assunto antes, mas à medida que o tempo se esvai em nossa ampulheta da vida, esse entendimento se torna quase imprescindível, embora inalcançável. Tentamos nos agarrar a alguma coisa que justifique o sofrimento, a dor, as decepções, as tristezas, o ódio, o desejo de vingança, as traições, tudo enfim que nos tenha causado dissabores e sensação de impotência. Agregue-se a isso a impressão de que a humanidade caminha para sua autodestruição, enquanto ainda temos entes queridos neste mundo, e teremos compreendido a máquina dos sonhos que preserva a chama de vida ainda acesa.
Filósofos, sociólogos, antropólogos, teólogos se sucedem na história do homem, sempre buscando a causa, a origem da existência e a motivação para nossa sobrevivência. Ao contrário dos animais, o homem pensa, mas não é por isso que ele existe. O que nos mantém vivos é a esperança de que haja, de fato, uma razão maior, a possibilidade de preservarmos a essência do ser que existe dentro de nós, e que alguns chamam de espírito, outros de alma... o nome não importa. Mas essa criação mental de algo imaterial que transcende a morte é que, de fato nos mantém vivos, nos motiva a ser melhores, a buscar a evolução, a superar os limites do corpo e da mente. Esse é o segredo dos homens, a grande mentira que cada um leva consigo até que o inevitável fim nos alcance e nos mostre que foi apenas uma ilusão e, mesmo lembrados em preces, em nomes de praças, em livros, nas lápides de nosso último endereço, no instante final de nossas vidas saberemos que nada nos livrará do ostracismo, e que essas pequenas menções ao que fomos não nos trará de volta a este mundo, nem nos levará a outras esferas de consciência.
Essa verdade incômoda às vezes é esquecida, ou mesmo negada veementemente por quem ainda está aqui, pois não saberíamos como justificar o dia seguinte, o trabalho, as obrigações cotidianas; nada nos impediria de rejeitar qualquer desconforto ou ameaça, nada nos obrigaria a ser honestos, justos, corretos, pois essas palavras deixariam de ter significado diante de nossa fatal consumação. Assim, torna-se preferível a mentira, as crendices, a fé e até a convicção de que existe algo transcendental depois de nossa vida terrena. E o homem encontrou meios de propagar essa pretensa verdade, que assume diferentes feições conforme a cultura, o saber, o ceticismo, as tradições. Tribos primitivas e sociedades intelectuais, cada uma tem suas próprias razões para construir um arcabouço, uma fundação mística, xamânica ou religiosa que sustente os princípios de coesão social que torna a vida suportável para todos.
Assim, por que escrevo? Para quem escrevo se não tenho essas convicções, se acredito que a morte é o fim de tudo, que não existe deus, céu, inferno ou purgatório, não existem anjos nem demônios, e que quando eu morrer todo conhecimento que adquiri estará perdido para sempre? Por que insisto em me aliar a grupos de defesa do bem comum? Por que critico aqueles que agem de má fé, enganando os ingênuos em favor de si mesmos? Por que combato, com os instrumentos intelectuais que desenvolvi nesse meio século de reflexões e estudos, aqueles que contrariam os princípios da ética, da justiça, da igualdade social? O que espero conseguir com meus pensamentos manifestos, se tudo não passa de mera ilusão? A quem me reporto, afinal?
Assim como todos, eu também preciso de razões para existir, para que o tempo se torne suportável em meus dias intermináveis. Então, escrevo, até por saber que nenhum intelecto é o bastante complexo e evoluído para explicar, ainda que a si mesmo, a razão de estarmos aqui. Sim, isso também é ilusão, é farsa, é mentira, mas me mantém vivo e me faz parecer com os outros seres que, como eu, povoam esta pequena nau sem rumo, voando a esmo pelo espaço infinito e incompreensível. Pensando assim, deixo que o tempo se encarregue de me levar para onde for, pouco me importa, e minhas mágoas se tornam menos ácidas, menos cruéis.
Quando me for para sempre, ficarão esses escritos soltos neste espaço virtual até que uma nova tecnologia sepulte esse obsoleto objeto de que hoje poucos podem prescindir. E como minhas palavras se esvaindo até o fim, assim também novos pensamentos e novas tecnologias farão o homem pensar que é eterno, imaginar-se o próprio deus que ele criou, até que seus traços se esgotem, como a imagem de um espelho enferrujado, despedaçado em um monte de lixo inerte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário