Hoje, pela manhã, eu tomava café, como de costume, em uma galeria daqui de São Gabriel, comendo tapioca e um suco de abacaxi. Na mesa ao lado, um antigo funcionário da Funai conversava com um rico comerciante (o proprietário da galeria) e outra pessoa que não conheço, quando ouvi o seguinte comentário: "o concurso da Funai deveria ser regional; não tem sentido vir uma pessoa de São Paulo, que nem conhece a região, os costumes, a comida, e tomar o lugar de um morador daqui. Aliás, a Funai nunca fez nada mesmo para São Gabriel!..."
Bem, não participei da conversa, mas fiquei com meus pensamentos... afinal, eu poderia ter escolhido qualquer lugar para morar, pois minha classificação me permitia isso. Mas escolhi esta cidade porque acreditei que poderia fazer muito por esses indígenas que foram tão massacrados e humilhados ao longo da história, e hoje vivem como párias dessa sociedade, herdeira dos mesmos usurpadores, exploradores e traficantes de escravos que para cá vieram nos séculos XVI a XIX. Muitos desses comerciantes, a maioria de origem árabe ou nordestina, foram os algozes desse povo que vive na miséria e depende da Funai para sobreviver.
No início, foram os missionários Carmelitas, os soldados do reino de Portugal e os comerciantes; depois, foram os missionários Salesianos, os capangas de fazendeiros, os soldados e os comerciantes; em um terceiro momento, já no auge da ditadura militar, foram os soldados que aqui "protegiam nossas fronteiras" e construíam estradas, os empreiteiros da Queiroz Galvão, os missionários evangélicos e os descendentes dos comerciantes que aqui se estabeleceram.
Enquanto os missionários destruíam as tradições, as línguas, os costumes, as lendas e os lugares sagrados dos indígenas, soldados e comerciantes estupravam as mulheres indígenas, cujos parentes haviam sido capturados para servir de escravos nas fazendas dos nobres. Pois é um descendente desses "desbravadores" que julga saber o que deveria a Funai fazer para o bem dessa população que, desprovida de tradições e culturas, perdidas as conexões que a sustentava em uma sociedade solidária e igualitária, agora se embriaga pelas ruas de São Gabriel da Cachoeira, à vista de todos, humilhada e desqualificada socialmente.
Eu já passei por esse tipo de preconceito outras vezes, por sociedades que se envergonham de ser brasileiros e que, por isso, ainda alimentam o desejo de se tornarem independentes. Quando me mudei para Recife, fui escolhido por um empresário pernambucano em uma lista de cinco candidatos, três de Recife e dois de São Paulo. Na primeira oportunidade que tiveram, jogaram-me na cara que eu era o usurpador de empregos que, por direito, pertenciam aos pernambucanos. Afinal, o que nós, paulistas, tínhamos a mais que eles? Deveriam perguntar ao empresário que me escolheu.
Um dia, em um almoço em minha homenagem, tive que ouvir uma série de discursos de críticas contumazes contra os exploradores paulistas, "amenizados" pela afirmação de que eu já podia ser considerado pernambucano, uma vez que morava há vários anos em Recife. Ao final dos discursos deram-me um recorte de jornal com uma reportagem de página inteira, cujo tema era a "Confederação do Equador", movimento separatista do século XIX.
Pois existem outros casos, como o preconceito dos sulistas, principalmente do Rio Grande do Sul, que nos consideram, a todos os demais brasileiros, toscos demais para pertencer à estirpe gaúcha. Certa feita, indo a Porto Alegre a serviço, recebi, em um jantar, um exemplar do livro "A História do Povo Gaúcho", um libelo nada discreto em defesa da emancipação política dos três estados sulistas, antiga reivindicação desses "brasileiros": a "República dos Pampas" e a "Revolução Farroupilha"! No Rio Grande do Sul, principalmente, um dos mais arraigados costumes regionais é dos Centros de Tradições Gaúchas, os famosos CTG.
Há quem defenda, entre as organizações e federações indígenas, principalmente da região oeste da Amazônia, a emancipação de suas Terras demarcadas; essa idéia, alimentada por incendiários ideológicos, ignora a total dependência desses povos das ações assistencialistas do Estado Brasileiro. É, portanto, muito difícil falar em emancipação quando a sociedade não se estruturou adequadamente para sobreviver com seus próprios recursos. Além do mais, há um grande interesse internacional, discretamente manifestado, de internacionalização da Amazônia; e as Terras Indígenas, com sua autonomia legalizada, é o alvo predileto dessas ações, capitaneadas por ONG´s "desinteressadas" e "humanitárias".
Outro dia eu conversava com alguns antropólogos e comentei, sem nenhuma pretensão dialética, o fato de os indígenas brasileiros não estarem preparados para competir, intelectualmente, com as populações "brancas" e caucasianas, de origem européia. Minha intenção era apenas de constatar um fato óbvio: o de que os indígenas, maltratados e humilhados por centenas de anos, vivem hoje em total dependência das verbas e programas de ajuda da Funai, da Funasa e do MEC. Mesmo com algumas brilhantes mentes inseridas nos meios acadêmicos, e assistidas por organizações internacionais de pesquisa, via de regra, as aldeias do Alto Rio Negro ainda vivem em estágios primários de sociedade.
Pois esses antropólogos mal saídos das universidades, se rebelaram violentamente contra mim, alegando meu despreparo intelectual para discutir temas de sua (deles) competência. Ficaram escandalizados! E eu, estupefato com a atitude radical e reacionária desses indivíduos. Continuo defendendo meus princípios, que não são acadêmicos, mas de cunho pessoal, sem nenhuma pretensão intelectual senão a de manifestar o meu direito de pensar e discordar.
São esses preconceitos sociais que transformam nosso mundo em um lugar difícil de se viver, onde as vaidades pessoais sobrepujam os anseios coletivos, e a arrogância intelectual rejeita tudo o que não está contido nos compêndios acadêmicos, geralmente escritos por estrangeiros, e versando sobre nossa realidade. Será que essas "mentes brilhantes" se esqueceram de sua própria história de dominação e terror?
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