quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A Moratória da Soja, a Ocupação da Amazônia e a Questão Ambiental

Desde 2006, o Greenpeace celebra a assinatura e a renovação anual de um acordo com os produtores rurais, que se comprometeram em não comercializar soja produzida em áreas desmatadas. Aparentemente, um bom acordo para os ambientalistas, não fosse o fato óbvio que todas as lavouras de soja do Cerrado e da Amazônia foram plantadas em áreas que foram devastadas há menos de 50 anos...

Vegetação ciliar às margens do Rio Negro, AM
Os ruralistas declararam, este ano, que seria a última renovação do acordo que, a partir de 2015, seria substituído por um novo compromisso, tomando por base o novo Código Florestal, e os instrumentos criados para o Cadastro Ambiental Rural. Com isto, os ruralistas estariam "legalizando" as inovações que eles mesmos propuseram para a "Gestão Ambiental" e para a "Sustentabilidade Agropecuária", nos moldes do novo código florestal.

Em tese, essas propostas viriam de encontro às reivindicações ambientalistas, e permitiriam que eles continuassem a ter acesso ao farto crédito rural, tomando empréstimos a juros subsidiados, como sempre fizeram, assegurando, a um setor sempre endividado, as benesses e generosidades do poder público e dos bancos oficiais de fomento (Banco do Brasil, Caixa Econômia, BNDES). Quantas moratórias a esses empréstimos foram concedidas nos últimos 50 anos? Quantos "perdões" ou parcelamento de dívidas tributárias foram concedidas aos latifundiários?

Pois bem, vamos aos fatos históricos.

O avanço das fronteiras agrícolas sobre a Floresta Amazônica teve início durante a Ditadura Militar, mas suas origens históricas devem ser debitadas a Juscelino Kubitscheck, que pôs em prática as ideias de Getúlio Vargas, de transferir a capital federal para o Centro-Oeste brasileiro. Seu propósito era a "interiorização do desenvoolvimento". Os militares de 64 deram um cunho estratégico ("Segurança Nacional") a esse objetivo, alegando que a ocupação de nossos territórios da região norte seria imprescindível para a afirmação da Soberania Nacional perante a comunidade internacional, que já olhava com interesse as reservas de minérios e a riqueza biológica da Floresta Equatorial para a indústria farmacêutica.

Extração de madeira de Terra Indígena no Pará
A ocupação da Amazônia se deu pela construção da rodovia Transamazônica, complementada por outras rodovias que cruzaram a floresta em todas as direções, criando extensa malha viária, que tornou possível a migração de povos de todas as regiões do Brasil para as áreas antes inóspitas da floresta, e abrindo novas fronteiras agrícolas para essas populações. Para estimular essa migração foram oferecidas terras da União, que se tornariam o embrião das novas cidades que se instalariam ao longo das rodovias. Gaúchos e nordestinos foram os "desbravadores" desses territórios, inicialmente destinados à agricultura e à pecuária de subsistência.

Hidrelétricas da Amazônia (instaladas e previstas) - clique na imagem para ampliar
Em cerca de 50 anos, um quarto da floresta amazônica foi transformada em campos agrícolas. Junto à agropecuária, outros interesses foram despertados: o garimpo de Serra Pelada, a mineração de Carajás, as hidrelétricas de Tucuruí, de Balbina, do Tapajós, do Madeira, do Xingu... um imenso plano de megaconstruções de hidrelétricas foi desenvolvido, tendo seu marco inicial nos governos militares e sendo reativado nos governos petistas, sob coordenação de Dilma Rousseff, em resposta aos apagões do governo FHC. Toda essa energia gerada na Amazônia tinha como público consumidor as populações do Sul e do Sudeste do país.

Essa estraordinária mobilização de povos e interesses trouxe consigo os graves problemas dos aglomerados urbanos (crimas, prostituição, bebidas, drogas), mas também a grilagem de terras, a pistolagem e os "coronéis" da política e da exploração dos recursos naturais, com gravíssimos e irreversíveis danos ao Meio Ambiente. Tudo isso aliado à corrupção nos bastidores de Brasília.

Queimada em meio à vegetação nativa: o 1º passo para a devastação.
As grandes fazendas que se instalaram inicialmente em Mato Grosso e Goiás, logo estenderam seus domínios para o sul da Amazônia, concentrando-se, principalmente, em Rondônia, Pará e Tocantins. As fronteiras agrícolas se expandiam pela ação de madeireiras, seguidas pela pecuária e pelas grandes plantações de soja.

No período de transição da Ditadura para a nova Democracia o Brasil parou. Passamos por grave crise econômica, combatida por mirabolantes "planos econômicos" nos governos de Sarney e Collor, que levaram o país à estagnação por cerca de uma década. O Brasil herdava, dos militares, uma dívida externa de 100 bilhões de dólares, que foram captados para alimentar o assim chamado "milagre econômico" de Delfin Neto, baseado nas grandes obras de infraestrutura: estradas, pontes, hidrelétricas.

Situação da Transposição do rio São Francisco, dez anos depois de iniciada
Os governos petistas seguiram o mesmo caminho, com projetos questionados até por especialistas, como é o caso do "elefante branco" da Transposição do rio São Francisco, cujo valor previsto, de 3,4 bilhões de reais, já supera hoje os oito bilhões, sendo que grande parte da obra encontra-se em estado de abandono.

Resgatado o equilíbrio das contas públicas, graças à "Lei de Responsabilidade Fiscal" e à privatização das grandes estatais de energia, mineração e comunicações, promovidas por Fernando Henrique Cardoso, o país voltou a crescer e expandir sua Economia, principalmente devido ao Agronegócio e às gigantescas propriedades rurais da monocultura de soja, cana de açúcar, milho, algodão e à criação extensiva de gado. A mineração também deu sua contribuição, produzindo ferro, alumínio, manganês para exportação.

A Economia ia bem, mas o povo e o Meio Ambiente iam muito mal. O salário mínimo não ultrapassava a barreira dos cem dólares, a educação seguia, trôpega, pelas reformas promovidas pelo Acordo MEC-USAID dos tempos da Ditadura, e a mão de obra continuava despreparada para alavancar o crescimento industrial. Enquanto isso, os movimentos sociais bradavam "Reforma Agrária já!", através do MST e outras siglas campesinas.

Por do Sol na Floresta Amazônica
Nesse clima de contradições e de conflitos fundiários, o PT se elegeu presidente, na figura carismática de Lula, e atropelou o poder com sua máquina de arrecadação do Mensalão, enterrando-se na lama da corrupção e dos conchavos políticos, aliando-se aos partidos que havia criticado enfaticamente desde sua fundação no ABC paulista. Os movimentos populares se emanciparam e o poder central viveu dias de "ideal revolucionário", substituindo, em oito anos, toda estrutura de poder político, através dos sindicatos e da barganha de cargos em todos os escalões do governo. Um novo grupo de "revolucionários" petistas, assessorado por intelectuais de esquerda trazidos da Academia, tomou o poder, mas entregou posições estratégicas de ministérios e de empresas estatais para partidos sem qualquer ideário democrático ou compromisso ético com a Nação brasileira.

Percebendo a fragilidade desse governo inexperiente e ávido pelo poder, forças reacionárias, vinculadas às oligarquias e ao latifúndio, se infiltraram no poder, tomando de assalto ministérios como o das Minas e Energia, da Agricultura e Pecuária, e do Trabalho, além de manter grande influência nas decisões políticas e econômicas, principalmente a partir da posse de Dilma Rousseff na Presidência da República. Empreiteiras, mineradoras, banqueiros e latifundiários passaram a frequentar o Palácio do Planalto com a desenvoltura de quem não só faz parte do poder, mas tem a primazia de decidir as questões fundamentais da política e da economia nacionais.

Garimpo em Terra Indígena do Pará, próximo a Belo Monte
Se anos de debates ideológicos entre membros da Academia, Ambientalistas e ideólogos socialistas conseguiram produzir a Constituição Federal, o Código Florestal e os avanços da legislação indígena e quilombola, essas novas alianças do poder jogaram tudo por terra em pouco mais de uma década. Não apenas o Meio Ambiente está ameaçado, mas também o armistício entre trabalhadores e empresários, bem como as conquistas sociais, alcançadas a duras penas, desde o fim dos governos ditatoriais. Bancadas fundamentalistas de evangélicos e ruralistas tomaram o poder no Congresso Nacional, aprovando, em poucos anos, aberrações jurídicas que invalidaram décadas de luta pela Democracia e a Liberdade.

Políticos soterrados nas urnas e no julgamento popular, como Paulo Maluf, Renan Calheiros e José Sarney, foram resgatados pelo PT, transformando as casas legislativas em balcões de barganha e de interesses escusos e fascistas. Essa bancadas dominaram de tal forma o poder que já não sabemos quem governa o país: se o PT de Lula ou se o PMDB de Sarney. O fato é que o país caminha sem rumos, sem planos, sem comando central, deixando passar ao largo a mais espetacular oportunidade histórica de se alçar para níveis de desenvolvimento jamais imaginados, graças à grande crise econômica de 2008, que aniquilou as economias europeias e norte-americanas. A China, o México, o Chile, a Índia e outros países menores que o Brasil se agarraram a essa oportunidade e alavancaram suas economias, deixando o Brasil para trás.

Área alagada pela interrupção do curso de um igarapé
A expansão agropecuária teve como consequência imediata a devastação de nossos principais biomas: o Cerrado e a Caatinga, que encolheram 50%, a Amazônia, que perdeu 25% de sua biomassa, e o Pantanal, que se encontra ameaçado pelo esgotamento de seus recursos hídricos, cujas nascentes se encontram, em grande parte, no Cerrado.

A agricultura e a pecuária seguem sua marcha de devastação, aliadas à mineração e à extração de madeiras, além da mais nefasta política de construção de hidrelétricas, com graves impactos às populações tradicionais indígenas e ao Meio Ambiente.

Nossa maior empresa pública, a Petrobrás, uma gigante do petróleo com áreas potenciais de prospecção, passou, nos governos petistas, a cumprir um papel de reguladora das taxas inflacionárias, mantendo preços deficitários, comprometendo os lucros de seus investidores e minando sua capacidade de investimentos, justo no momento em que foram descobertos poços gigantes de petróleo na plataforma marinha do litoral fluminense, conhecidos pela camada de pré-sal, a grandes profundidades. Uma intensa batalha política tomou conta do Congresso, em uma disputa pelos recursos de exploração do Pré-Sal, que já foram divididos entre os Estados da Federação antes mesmo que sua viabilidade técnica e econômica justificasse a euforia inicial.

Diante desse cenário, talvez a Moratória da Soja não tivesse importância tão relevante para a conservação do Meio Ambiente, não fosse o papel determinante da floresta na regulação do clima da América do Sul. Ocorre que o desequilíbrio climático causado pela devastação da Amazônia afetará o Brasil a ponto de inviabilizar até mesmo os latifúndios do agronegócio, sem que esse setor da economia tenha dado sua contribuição efetiva para alavancar o desenvolvimento de nosso país. Houve, sim, um grande enriquecimento desses proprietários de terras, que se limitaram a aumentar suas fortunas pessoais, gerando pouco emprego em função da mecanização plena de suas atividades, pouco contribuindo, também, com baixa tributação de seus produtos, e gozando de incentivos fiscais que ofendem a dignidade de qualquer cidadão, que paga seus impostos.

Canteiro de obras da Hidrelétrica de Belo Monte
Se a moratória da soja é uma mentira, pouco importa agora. O fato é que a devastação continua ativando seu ciclo perverso: derrubada das árvores nobres, queima do que restou da floresta, criação de gado até a exaustão da terra, plantio de soja e, finalmente, a longo prazo, a desertificação desses territórios. Já não importa quem nasceu primeiro: o ovo da derrubada das árvores ou a galinha da exploração intensiva do solo até sua exaustão. Todos fazem parte do mesmo círculo vicioso e nefasto, que resultará na miséria de nosso povo.

Se os latifundiários nunca respeitaram o Código Florestal, em seus 50 anos de existência até a descaracterização promovida pelos ruralistas, por que o fariam agora, com a infeliz redação aprovada em 2012? E mesmo o fazendo, sua nova redação propicia alternativas suficientemente "flexíveis" para se acabar com a quase totalidade de nossos biomas. Estima-se que mais de 50% da Amazônia poderá ser, legalemente, derrubada pelos latifundiários, graças ao novo código, apenas pela redução das áreas de preservação permanente e das reservas legais. Aliás, em assentamentos do INCRA essas reservas sequer existem mais, devido à omissão desse órgão e da falta de punição dos infratores. Os assentamentos são a evidência do efeito "dominó" sobre as vicinais da Transamazônica!

Se a brilhante contribuição de Aziz Ab´Saber, para que se elaborasse um Código da Biodiversidade, era uma utopia inadmissível para nossa primitiva sociedade de consumo e de desperdício, esse novo "Código Ruralista" será uma sentença de morte a ser aplicada à Natureza, em doses homeopáticas, para que a vítima (nossa Nação) não perceba que está sendo entorpecida por um veneno letal...

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