Wilson Tosta, Rio de Janeiro
RIO - Pesquisador há quatro décadas das culturas indígenas brasileiras, o antropólogo João Pacheco de Oliveira, professor do Museu Nacional da UFRJ, afirma que a impressão de uma rebelião indígena no País não é real: "Os vários problemas do setor não têm conexão entre si". O que é unificado, avalia, é a maior ofensiva contra a política indigenista da história brasileira, com propostas de revisão de demarcações e da legislação que regula a área, com ações no Congresso, na mídia e junto a setores do governo. Enfrentamento com fazendeiros no Mato Grosso do Sul, hidrelétricas em áreas indígenas e confrontos com sojicultores no Norte, conflitos com grileiros no Nordeste e rixas com pequenos produtores no Sul formam o quadro descrito pelo acadêmico, no qual se destaca o forte crescimento do agronegócio, que exige sempre novas terras para cultivar, em modelo de "expansão sem fim".
Ed Ferreira/Estadão
Índios protestam em Brasília
Pacheco avalia que o governo Dilma Rousseff até agora não definiu como vai agir em relação à questão, mas ao mesmo tempo não sinalizou que apoiará propostas como a de transferir para o Congresso Nacional o poder de demarcar terras indígenas, defendida pela bancada ruralista. Ele acha que o governo está dialogando com os setores envolvidos e não parece que queira retroceder na política de demarcações, que garantiu a sobrevivência dos ianomâmis em Roraima, por exemplo.
A legislação indigenista brasileira, diz, é avançada e elogiada no exterior, e revogá-la colocaria o Brasil na incômoda companhia dos países que reprimem minorias como os curdos, o que daria ao País o "Nobel de genocídio". Ele também rebate argumentos do senso comum contra os índios, como o de que são menos de 1 milhão de pessoas e têm reservas que somam 13% do território nacional. "As áreas indígenas não são apenas destinadas aos indígenas, em grande parte são reservas ambientais", diz. "E não são terras dos indígenas, são terras da União."
A que atribuir a crise na área indígena nessa magnitude, agora?
Talvez precisasse saber exatamente de que crise você fala. Os vários fenômenos ocorridos são coisas diferentes, a unidade entre eles não é real. Os mundurucus estão preocupados com a instalação da barragem lá na região do Tapajós. Há uma outra dinâmica que é a dos índios do Sul do Brasil. Existem problemas na área do Mato Grosso do Sul... Enfim, são questões bastante diferentes. Elas estão sendo homogeneizadas porque, no momento, há uma força muito grande contra a legislação indigenistas brasileira, contra as normas relativas à demarcação de terra, que pretende agrupar essas questões como uma razão única.
Seria ofensiva contra a política indigenista?
Uma ofensiva violenta. Nunca aconteceu algo de tal proporção e com tal capacidade de mobilização política junto a setores do governo, junto à opinião pública. É um fato realmente inédito na história do País. Do ponto de vista da assistência aos índios, tudo está acontecendo segundo as normas habituais e segundo o ritmo normal das tensões locais e da resolução dessas tensões. Mas há a impressão de uma rebelião indígena em curso. Isso não tem nenhum fundamento. Agora, do outro lado, tenta-se uma reviravolta nas normas legais, com muita força e absoluto equívoco. A legislação brasileira é bastante avançada quanto ao reconhecimento dos direitos das minorias, em certos lugares uma legislação exemplar em termos internacionais. Essas acusações colocadas por setores econômicos, setores políticos, são totalmente inverídicas.
Argumenta-se que o Brasil destina 13% de seu território a menos de 1 milhão de índios.
As áreas indígenas não são apenas destinadas aos indígenas. Em grande parte são reservas ambientais, santuários ecológicos desrespeitados: Xingu, a área ianomâmi, algumas regiões da fronteira do Javari, Rio Negro. E não são terras dos indígenas, são terras da União. As terras indígenas não são esses 13% que se coloca. Aliás, o próprio argumento é bastante questionável, porque a concentração fundiária no Brasil deve levar 0,2% da população a ter 80% das terras agricultáveis. Então, essa justificativa seria pela reforma agrária imediata.
Pode-se dizer que no Norte o principal impacto sobre as áreas indígenas é de grandes obras como hidrelétricas, e no Sul ele vem do agronegócio?
Na Amazônia também existe um impacto grande da produção rural. A soja hoje está em Roraima. Além disso, há uma série de outras investidas, entre elas de madeireiras estrangeiras e de companhias de mineração também internacionais, como as africanas. Mas, se for pensar no Centro-Oeste, não há dúvida de que a pressão maior é dos investimentos da soja. Estão destruindo extensas regiões do País, de forma até irrecuperável. As poucas áreas preservadas são frequentemente habitadas por indígenas, que só estão preservadas porque são terras indígenas ou porque existe terra indígena no entorno. As outras foram consumidas por esse processo de desenvolvimento predatório, muito linear e muito rápido, que destrói as condições da região. Já no Sul do Brasil as condições são bem diferentes. Os conflitos com indígenas envolvem pequenos proprietários rurais, que têm articulação com o mercado, uma produção com financiamentos, uma agroindústria, de certa forma. No Nordeste a situação é variada, mas frequentemente os índios brigam contra grilagens, grandes propriedades, latifúndios muitas vezes desocupados.
O forte crescimento do agronegócio estaria por trás da tentativa de mudar a lei?
Acho que sim. O agronegócio opera por expansão, vai crescendo, incorporando novas terras, nem tanto modificando a tecnologia, mas ocupando com o mesmo tipo de procedimento. É uma expansão sem fim. Isso, de alguma forma, tornou mais fácil promover a invasão das áreas indígenas. Muitas vezes as terras são demarcadas nominalmente como indígenas, mas exploradas por outros. E uma política de proteção em relação a essas populações não deve somente se preocupar com a terra, mas também com as condições de sobrevivência delas: a geração de riqueza, a qualificação deles como cidadãos, o pertencimento à sociedade nacional.
Como tem sido a postura do governo Dilma nesse sentido?
O governo Dilma ainda não definiu muito bem como vai agir em relação a isso. Em algumas áreas ocorreu paralisação. Mas, ao mesmo tempo, houve um empenho no Mato Grosso do Sul em resolver a situação dos terenas e dos guaranis. Acho que essas sinalizações são muito importantes para arrefecer ânimos e fazer as pessoas pensarem um pouco sobre o que está sendo praticado.
Mas a postura do governo não é dúbia? Ele às vezes fica nas mãos da bancada ruralista no Congresso.
Talvez em outro setor, como a análise política, isso possa ser observado. Há pressões sendo feitas para reformular a política indigenista, para que se perca um avanço na legislação, nas práticas administrativas. Mas acho que o governo ainda não retrocedeu. Está dialogando com essas forças, tentando aplicar a legislação.
E não há disposição de mudar a legislação por parte do governo?
Espero sinceramente que não. Seria colocar o governo, vamos dizer, muito mais à direita dos governos militares. Seria na verdade desproteger as populações nativas, algo a que hoje ninguém se atreveria - com exceção de alguns países do Oriente Médio que reprimem minorias como os curdos... Mas acho que o Nobel de genocídio seria uma coisa terrível.
Quais foram os resultados da política de demarcações?
Nesse sentido, a situação no Brasil nos últimos 30 anos caminhou bem. Muitas terras foram regularizadas, povos que estavam sob violento assédio, cerco, ameaça, conseguiram se estruturar mais. Até o dado demográfico recolhido pelo IBGE mostra uma expansão dos indígenas. Mas a demarcação não se realiza por si só. Também exige em outro momento uma política de uso dos recursos de maneira adequada, assessorada pelo Estado de forma lúcida, para que esses recursos não sejam devastados. Isso é o chamado desenvolvimento sustentável.
A existência dessas reservas salvou alguma etnia?
O caso mais evidente, de grande proporção, é o dos ianomâmis. Nos anos 1990, eles chegaram a ter sua área invadida pesadamente por garimpeiros, que a estavam destruindo da forma mais rudimentar possível. O reconhecimento da criação da terra indígena ianomâmi evitou essa situação de extermínio, de prostituição, de violência, e assegurou uma certa possibilidade de eles se adaptarem, de serem desenvolvidos programas de assistência dentro da reserva. Menciono o caso ianomâmi, mas é o modelo geral. Foi assim no Parque do Xingu.
Mato Grosso do Sul é onde se concentra a maior pressão?
O problema é disseminado. Anos atrás, em Roraima, havia muita beligerância, perseguição, marginalização dos indígenas por forças políticas do Estado. Depois do reconhecimento da Raposa Serra do Sol, da demarcação da área pelo governo brasileiro e da ratificação pelo Supremo Tribunal Federal, foram retiradas algumas pessoas que estavam na região e o problema acabou. Imagino que a mesma coisa vá se passar no Mato Grosso do Sul, onde o grau de belicosidade contra os indígenas é de fato mais forte. Os guaranis são uma população bastante numerosa, os terenas idem. E ao mesmo tempo tem o agronegócio querendo novas terras. Na medida em que o governo brasileiro reconhece direitos, a tendência é que num primeiro momento ocorram conflitos, muita reação por parte dos que podem vir a perder lucros não permitidos pela lei, pela Constituição. Mas essas coisas se ajustam.
Fonte: O Estado de São Paulo
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