O Antropoceno: o ser humano como o grande agressor
Ultimamente ouvimos mais e mais vozes de economistas, geralmente os mais renitentes face às questões ecológicas, referindo-se aos limites físicos da Terra. Nenhuma solução da atual crise econômico-financeira, dizem, pode ignorar este dado. Efetivamente, o sistema do capital que vive de uma dupla exploração, da natureza e da força de trabalho, está sentindo dificuldades em se auto-reproduzir.
As crises clássicas conhecidas, como por exemplo a de 1929, afetaram profundamente todas as sociedades. A crise atual é mais radical, pois está atacando o nosso modus essendi: as bases da vida e de nossa civilização. Antes, dava-se por descontado que a Terra estava aí, intacta e com recursos inesgotáveis. Agora não podemos mais contar com a Terra, sã e abundante em bens e serviços. Ela é finita, degradada e com febre, não suportando mais um projeto infinito de progresso/crescimento como o busca obstinadamente o governo brasileiro mediante o PAC.
A presente crise desnuda a enganosa compreensão dominante sobre a história, a natureza e a Terra. Ela colocava o ser humano fora e acima da natureza com a excepcionalidade de sua missão, a de submetê-la e dominá-la. Perdemos a noção, comum a todos os povos originários, de que pertencemos à natureza e de que somos sua parte e parcela. Hoje diríamos, somos parte do sistema solar, de nossa galáxia que, por sua vez, é parte do universo. Todos surgimos ao longo de um imenso processo evolucionário que já dura 13,7 bilhões de anos. Tudo é alimentado pela Energia de Fundo e pelas quatro interações que sempre atuam conjuntamente: a gravitacional, a eletromagnética e a nuclear fraca e forte. A vida e a consciência são emergências desse processo.
Nós, humanos, representamos a parte consciente e inteligente do universo, da Via-Láctea e da própria Terra, com a missão, não de dominá-la, mas de cuidar dela para manter as condições físico-químico-ecológicas que nos permitem levar avante a nossa vida e a civilização que tão custosamente construímos.
Ora, estas condições estão sendo minadas pelo atual processo produtivista e consumista. Já não se trata de salvar o sistema econômico, nem nosso bem estar, mas a vida humana e a civilização. Se não moderarmos nossa voracidade e não entrarmos em sinergia com a natureza, dificilmente sairemos da atual situação. Ou substituímos estas premissas equivocadas por melhores e mais adequadas ou corremos o risco de nos autodestruirmos. A consciência do risco é explicitamente denunciada na Carta da Terra, já em sua primeira página, mas ela não é, ainda, coletiva.
Para sermos realistas, cabe reconhecer um dado do processo evolucionário que nos perturba: junto com grande harmonia, coexiste também extrema violência. A Terra mesma, no seu percurso de 4,5 bilhões de anos, passou por várias devastações. Em algumas delas perdeu quase 90% de seu capital biótico. Mas a vida sempre se manteve e se refez com renovado vigor. O universo sempre conseguiu transformar o caos destrutivo em caos criativo. Do caos criou o cosmos (formas mais altas e elegantes de seres e de organismos vivos).
A última grande dizimação, um verdadeiro Armagedon ambiental, ocorreu há 67 milhões de anos, quando no Caribe, próximo a Yucatán no México, caiu um meteoro de quase 10 km de extensão. Produziu um tsunami com ondas do tamanho de altos edifícios. Ocasionou um tremor que afetou todo o planeta, ativando a maioria dos vulcões. Uma imensa nuvem de poeira e de gases foi ejetada ao céu, alterando, por dezenas de anos, todo o clima da Terra. Os dinossauros que por mais de cem milhões de anos reinavam, soberanos, por sobre toda a Terra, desapareceram totalmente.
Chegava ao fim a Era Mesozóica, dos répteis, e começava a Era Cenozóica, dos mamíferos. Em seguida, como que se vingando, a Terra produziu uma floração de vida como nunca antes na evolução. Nossos ancestrais biológicos, do tamanho de um coelhinho, surgiram por esta época. Somos do gênero dos mamíferos . Evoluímos até chegarmos ao homo sapiens.
Mas eis que nos últimos trezentos anos o homo sapiens que se mostrou também demens (hoje somos sapiens-demens) montou uma investida poderosíssima sobre todas as comunidades ecossistêmicas do planeta. Explorou-as sistematicamente e canalizou grande parte do produto terrestre bruto para os sistemas humanos de consumo e bem-estar. O preço que temos pago equivale a uma dizimação semelhante àquela de outrora.
O biólogo E. Wilson fala que a “humanidade é a primeira espécie na história da vida na Terra a se tornar numa força geofísica destruidora". A taxa de extinção de espécies produzidas pela atividade humana, segundo ele, é cinquenta vezes maior do que aquela anterior à intervenção humana. Com a atual aceleração, dentro de pouco – continua Wilson – poderemos alcançar a cifra de mil até dez mil vezes mais espécies exterminadas pelo voraz processo consumista. Em 1992 ele estimava a perda entre 27.000 e 100.00 espécies por ano. O caos climático atual é um dos efeitos desta guerra humana contra Gaia, sem nenhuma chance de ganhá-la.
O prêmio Nobel de Química de 1995, o holandês Paul J. Crutzen, aterrorizado pela magnitude do atual ecocídio, afirmou que inauguramos uma nova era geológica: a do antropoceno. Por esta palavra quis denunciar as grandes dizimações perpetradas pela irracionalidade do ser humano (em grego "antropos"). Somos os principais causadores da erosão física, química e biológica da Terra.
Assim terminou tristemente a aventura de 66 milhões de anos de história da Era Cenozóica. Começa o tempo da obscuridade.
Para onde nos conduz o antropoceno? Com base no baixo nível de consciência atual dos riscos que corremos, ninguém tem condições de prever qualquer saída salvadora. A nós cabe refletir seriamente, denunciar e gritar por todos os meios disponíveis, pois a nossa própria geração poderá conhecer as conseqüências funestas da irracionalidade de nossa forma de habitar o planeta, de produzir, de consumir e de esbanjar seus bens e serviços cada vez mais escassos.
Os Indignados na Europa e os “Ocuppiers” nos EUA já mostram uma nova consciência político-ecológica pois, entre tantas outras coisas, cobram também uma governança global do planeta Terra para fazer frente aos perigos coletivos que pesam sobre a vida e a humanidade.
Leonardo Boff é autor do livro CUIDAR DA TERRA - PROTEGER A VIDA: como evitar o fim do mundo, Editora Record 2011.
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